Os Castrados no Brasil Império
Autor: Sara J. da Silva[1]
Sara Landun
Resumo
Este artigo tece uma breve abordagem sobre os castrados no Brasil, procurando saber quais teriam sido as consequências de sua presença no cenário musical do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. O termo italiano castrati refere-se a pessoas do sexo masculino que tiveram os seus testículos cortados e retirados, quando crianças, a fim de manter a voz aguda na idade adulta. Principalmente nos séculos XVII e XVIII os castrados foram muito requisitados na Europa. A castração foi praticada na semi-clandestinidade, provavelmente, na Itália, Milão, Veneza, Bolonha, Florença, Luca, Norcia, Roma, Nápoles e Lecce. A criança nunca era castrada antes dos 07 ou depois dos 12 anos. Para a cirurgia de castração eram usadas bebidas à base de ópio como anestesia ou, então, a criança tinha suas veias carótidas apertadas até que viesse a desfalecer. O leite era utilizado para amolecer as partes a serem cortadas e a água gelada diminuía o sangramento. Fazia-se um corte na virilha e os testículos eram puxados para fora e cortados. Supõe-se que o índice de mortalidade por causa de hemorragias e infecções chegavam a 80%.
Um Breve Histórico
Castrati é um termo de origem italiana e refere-se a crianças do sexo masculino que na idade entre 07 e 12 anos tinham os seus testículos retirados com o propósito de manterem suas vozes agudas quando alcançassem à idade adulta. Um dos fatores que definiu o grande aumento desses cantores deveu-se ao fato de que desde o século XVII as mulheres haviam sido proibidas de cantar nas igrejas e nos teatros de Roma. Embora suas músicas fossem cantadas por falsetistas, que são homens com extensão vocal que atingia notas muito agudas, o timbre destas vozes masculinas não substituía a contento a ausência da personalidade vocal e a interpretação das vozes femininas. Por várias vezes a execução musical era realizada por crianças uma vez que, na idade infantil meninos e meninas têm sua extensão vocal semelhante e suas vozes soam na mesma altura, diferentemente do que acontece com as vozes dos homens e das mulheres adultas. Com a chegada inevitável da puberdade, esta trazia consigo as mudanças físicas e psíquicas provocadas pelo aparecimento dos hormônios masculinos e femininos.
A música européia nos séculos XVII, XVIII e XIX teve como uma de suas maiores expressões vocais os castrados, mas, principalmente nos séculos XVII e XVIII os castrados foram cantores muito requisitados e disputados nos palcos da Europa. Com a ascensão da burguesia e com a necessidade de saciar o consumo de música desencadeava-se, naquele momento um crescente desenvolvimento da ópera como estilo musical e, para executá-la, esses cantores desenvolviam sua técnica vocal com tamanha perfeição que viriam a tornar-se um fenômeno da música vocal sem precedentes. É possível afirmar que o canto lírico tenha sido definitivamente influenciado por esses cantores.
A Itália foi o grande centro de produção de castrados. Sabe-se, porém, que desde o século V apenas um grupo de cantores espanhóis estavam autorizados a cantar as partes de soprano na capela pontifícia, em Roma. A história não esclarece se o grupo era formado por castrados ou por falsetistas (homens de vozes muito agudas conhecidas atualmente como contra-tenores). Inocêncio XI (1676 a 1689 d.C.) havia proibido a presença de mulheres nos teatros de Roma. Essa medida estimulou a prática da castração. Os castrados haviam obtido uma grande habilidade vocal por causa das longas horas de exercícios vocais durante uma média de dez anos de estudos. A primeira admissão oficial de castrados, segundo Barbier, aconteceu em 1599 no coro pontifício italiano.
Portugal não produziu castrados, porém, na segunda metade do século XVIII, todas as execuções vocais destinadas às vozes femininas, fosse em igrejas ou teatros, eram cantadas por homens, castrados ou falsetistas. Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, Dom João VI (1767-1826), filho da rainha dona Maria I e do Príncipe Dom Pedro III, tomou várias iniciativas para trazer ao Brasil músicos e artistas da Europa.
Ainda em Portugal, somente na segunda metade do século XVIII surgem os primeiros castrados. Todos vindos da Itália. Este foi um dos fatos que responsabilizou o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho (1699-1782), culpado pela falta de desenvolvimento da ópera como mostra este texto escrito por Alcides Murtinheira do Centro de Língua Portuguesa – Instituto Camões – Universidade de Hamburgo:
Aspectos Vocais
Depois da puberdade os meninos passam por várias mudanças físicas causadas pela produção da testosterona que é o hormônio masculino responsável pelas principais características que diferem o homem da mulher. Uma dessas mudanças é a descida da laringe, que é, eminentemente, o órgão da fala, pois é ali que acontece a produção sonora causada pela vibração das pregas vocais. Suas vozes passam a soar uma oitava abaixo daquela de quando ele era criança. Com a castração a voz não passava pela fase da muda e continuava a soar naquela região. Dessa maneira o castrado cantava na mesma oitava que as vozes femininas, e mais, alcançava as tessituras tanto de soprano como de contralto. Por outro lado, sua voz diferenciava-se da feminina. Suas pregas vocais eram mais curtas que a dos homens, porém, mais longa que a das mulheres. Além disso, seu corpo, com estruturas óssea e muscular masculina, doava mais peso e ressonância ao timbre de sua voz.
Ao longo de até seis anos, com uma média de cinco horas de estudo por dia, os castrados tinham aulas voltadas ao desenvolvimento dos músculos da inspiração e da expiração a fim de adquirir uma respiração mais ampla, como a costo-abdominal. Esse tipo de respiração, com o alargamento das costelas flutuantes e o rebaixamento do diafragma, garante uma reserva aérea que permite, de forma admirável, a regularidade e o apoio respiratório para a execução de notas longas atacadas em pianíssimo e, que pouco a pouco, num crescendo, ganham peso e corpo para, depois de sustentadas, desaparecem num lento e pianíssimo decrescendo.
No decorrer do século XVII as composições exigiriam mais da envergadura vocal desses cantores. Chegando ao século XVIII suas vozes passavam da tessitura grave para a super-aguda com homogeneidade no timbre e perfeição na execução das passagens desses registros. Este feito é uma das dificuldades mais trabalhados no estudo da técnica vocal.
Mas, o virtuosismo desses cantores estava, também, na perfeição da execução dos ornamentos da música Barroca. Os trinados, grupettos, bordaduras, eram executados com a agilidade de passarinho. Aliás, segundo Patrick Barbier, a observação do canto dos pássaros era uma das metodologias de ensino da técnica vocal para os castrados.
O talento vocal da criança nem sempre era verificado antes do ato da castração. Alguns, já castrados, não eram possuidores de uma voz que, mesmo com os estudos, se sobressairia. O motivo dessa castração imatura era que os castrados possuíam um elevado status social o que lhes agraciava, quase sempre, com sucesso e fortuna. Senão, vejamos a seguinte citação de Barbier:
Tudo aproximava os castrados dos anjos do imaginário popular. Não vestiam os conservatórios napolitanos de anjinhos os pequenos eunucos para os velórios dos meninos mortos? Passava-se da mesma maneira no ideal estético do tempo: objetos de contemplação, de veneração até, enlaçavam com a figura tradicional do anjo músico e encarnavam simultaneamente a pureza e a virgindade. Nas igrejas, graças a uma voz que parecia desafiar as leis terrestres, constituíam o elo privilegiado e único entre Deus, a música e os homens. Não eram eles, enfim, a expressão mais própria dessa arte barroca que, na escultura, na pintura e na música, faziam da imitação dos anjos uma das suas figuras mais simbólicas? (BARBIER, 1994, p. 24-25)
Aspectos Fisiológicos
Por causa da castração o jovem não desenvolvia o pomo-de-adão porque suas pregas vocais eram mais curtas que a dos homens normais. Além disso, sua laringe não abaixava, ficando mais próxima às caixas de ressonância superiores dava mais brilho e projeção às suas vozes. Outro aspecto que a castração produzia era que esses cantores ganhavam um aumento de suas caixas torácicas. Como conseqüência desse tamanho aumentado eles ganhavam mais volume vocal que os outros cantores.
Por causa do corte e retirada dos seus testículos os meninos cantores não sofriam as transformações hormonais trazidas com a chegada da idade adulta e a altura e timbre de suas vozes mantinha-se na medida em que iam atingindo a maturidade e durante os séculos XVII, XVIII e XIX a música vocal de quase toda a Europa foi cantada pelos homens castrados.
Embora não produzissem espermatozóides podiam ter uma vida sexual normal, mas, sem gerar filhos.
A maior parte dos castrados acumulava mais gordura nas regiões dos quadris, coxas e pescoço o que, geralmente, é comum acontecer com as mulheres. Alguns tinham seus seios aumentados mais do que os de um homem normal.
A Castração
A castração foi praticada na semi-clandestinidade, provavelmente, na Itália, Milão, Veneza, Bolonha, Florença, Luca, Norcia, Roma, Nápoles e Lecce. A criança nunca era castrada antes dos 07 ou depois dos 12 anos. Antes, porque era muito precoce para que a vontade dela pelo desejo da castração fosse conscientemente manifestada. E essa vontade tinha que ser manifestado pela criança. Depois, porque já teria sido deflagrado o processo de alteração hormonal podendo, com isso, comprometer o sucesso da cirurgia. Como anestesia, eram usadas bebidas à base de ópio ou, então, a criança tinha suas veias carótidas apertadas até que viesse a desfalecer. O leite era utilizado para amolecer as partes a serem cortadas e a água gelada diminuía o sangramento. Fazia-se um corte na virilha e os testículos eram puxados para fora e arrancados com um corte. Supõe-se que o índice de mortalidade por causa de hemorragias e infecções fora de até 80% das crianças submetidas aos processos cirúrgicos.
Nos primeiros anos do século XVII a igreja, mesmo condenando o ato da castração, substituiu todos os falsetistas do coro pontifício pelos melhores castrados. Entretanto, não fazia muito sentido que em certos contextos religiosos e artísticos, onde as peças eram compostas para cantores adultos, que as partes musicais fossem executadas por crianças e, além disso, na medida em que as crianças iam crescendo elas adquiriam naturalmente o timbre característico das vozes adultas.
O Brasil e os Castrados de 1808 a 1822
Com a política expansionista de Napoleão Bonaparte no início do século XIX e a ameaça de invasão francesa sobre Portugal a família real portuguesa mudou-se para o Brasil. Em janeiro de 1808 chegaram à Bahia o príncipe regente e seu séqüito, e, Dom João VI (1767-1826) filho da rainha dona Maria I e do príncipe Dom Pedro III, recebe o direito ao trono após a morte de seu irmão mais velho. Depois que o príncipe instalou-se no Rio de Janeiro tomou várias iniciativas para promover a vinda de cientistas e artistas franceses para o Brasil. Em Lisboa mandou buscar músicos portugueses e castrati italianos na tentativa de reproduzir os costumes portugueses, na colônia.
Além da antiga capital foram registradas passagens desses castrati nos teatro e igrejas da Bahia conforme escreveu o cronista Tollenare, em suas Chrônicas Domingueiras, 1815 a 1817, referindo-se à música na Bahia: As mulheres não cantam; quando não há castrados, são homens que executam os falsetes, e sahem-se melhor do que o lamentável canto gregoriano, soluçado nas nossas igrejas de província, na França. (TOLLENARE apud ipsis litteris JUNIOR, 1940, p. 154)
Segundo Vasco Mariz, com a vinda dos castrados, o Padre José Maurício Nunes Garcia passou a dedicar muitas de suas árias a eles, possivelmente, a pedido do próprio Dom João VI. As peças eram compostas em tessituras pouco apropriadas para serem executadas por vozes que não tivessem o perfil vocal dos castrados.
Nas festas da Igreja da Glória no Rio de Janeiro cantava no coro um grupo famoso conhecido como o grupo dos sete castrados. Dentre eles estavam Fasciotti, Reale e Ciccioni que foram alguns dos castrados que Dom João VI mandara buscar. Um dos filhos do Padre José Maurício contava com orgulho as cenas de desafio cantadas por ele e por Fasciotti. Antonio Ciccioni foi o último castrado vivo no Brasil. Veio a falecer na segunda metade do século XIX em 28 de outubro de 1870.
Bibliografia
BARBIER, Patrick. História dos Castrados. Lisboa: Coleção Vida e Cultura, 1995.
MARIZ, Vasco História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
BOCCANERA,Sílio. O Theatro na Bahia:Livro do Centenário. Salvador: Officina Diário da Bahia, 1915, p.101.
SADIE, Stanley. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan, 1993,
FILHO, Moraes Melo. Festas e tradições populares do Brasil. In: Jangada Brasil, número 24 agosto de 2000. Disponível em: www.jangadabrasil.com.br/agosto24; acesso em 30 de março de 2006.
MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo Temático. José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Cultura, 1970.
[1] Sara J. da Silva é graduada em Canto pela Universidade Federal da Bahia, possui Licenciatura em Música e é Mestre pelo Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Faculdade de Comunicação da UFBA.
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